Corra! aborda o racismo institucionalizado na sociedade atual

Sem spoilers

Maysa Costa
4 min readDec 27, 2018

Um jovem fotógrafo viaja com a namorada para conhecer os pais dela, chegando lá ele passa por situações desconfortantes e perturbadoras. “Corra!” é o primeiro longa metragem do humorista Jordan Peele que é bastante famoso pelos seus stand ups e esquetes, com esse filme Peele nos mostra que uma premissa aparentemente simples pode entregar um thriller de arrepiar.

Daniel Kaluuya em “Corra!” (2017)

O longa extraí de uma situação básica um resultado muito eficaz, ele se porta bem dentro do que se propõe, constatando que um roteiro simples, mas bem trabalhado é bem melhor que um roteiro mirabolante, mas sem atenção aos detalhes e é esse o acerto do Peele, OS DETALHES. O grande triunfo desse filme não é ter mirabolâncias na trama, mas sim na abordagem, o diretor carrega uma sensibilidade ao nos aproximar do protagonista com os pequenos desconfortos que ele passa ao longo da história.

Ele já abre com um plano sequência com troca de eixo que já nos deixa preso na narrativa e segue com o primeiro ato que apesar de ter um ritmo lento, com alguns clichês de filmes “conhecendo os pais da namorada”, nunca fica tedioso, pois deixa bem claro que há algo de errado acontecendo ali. O segundo ato, mesmo que aparente revelar mais que deveria, traz inquietação e serve para aumentar cada vez mais a nossa curiosidade que nos aferrolha com indagações como “tem realmente algo de errado acontecendo”. Já terceiro ato nos prova que o roteiro nos manipulou e apenas nos fez pensar que estávamos desvendando o mistério (nem de longe ), pois ele cria várias mini encruzilhadas que permite diversos caminhos, mas o espectador não faz ideia de qual ele vai escolher, isso nos permite teorizar sobre cada passo que o filme dá.

Daniel Kaluuya e Allison Williams em “Corra!” (2017)

O filme é muito bem escalado, os atores estão perfeitos no papel. Daniel Kaluuya transita com perfeição no misto de emoções que o personagem sente por causa das situações bizarras, ele faz a conexão de personagem-espectador com a sua alta expressividade no olhar como reações as coisas que estão acontecendo. Allison Williams é operante como a namorada que vê de perto os pequenos preconceitos do dia-a-dia do Chris (Daniel Kaluuya) e lida com eles, ela passa a confiança que o Chris sente por ela que, consequentemente, sentimos também. Bradley Whitford faz o patriarca da família, bem humorado e aparentemente bem intencionado, ele sempre tenta justificar as bizarrices que Chris presencia. Catherine Keener faz a matriarca e intriga com a sua sisudez, é bem menos receptiva que o marido. Caleb Jones faz o irmão da Rose (Allison Williams), assusta com comportamento que beira a sociopatia, é descaradamente racista e sua presença em tela nos faz temer por todos. Precisa-se também haver destaques para Marcus Henderson que faz o jardineiro e a Betty Gabriel que faz a governanta, as cenas com eles foram as que mais me deixaram desconfortáveis e chocadas, enalteço principalmente a Betty que nos entrega a cena mais angustiante do filme apenas com um diálogo e a força de suas expressões.

Cena do filme “Corra!” (2017)

“Corra!” traz uma crítica racial sutil, sem cair em esteriótipos e nos faz refletir cada pequeno ato das personagens, por exemplo, o desespero do espectador só aumenta quando se percebe que as pessoas desaparecidas são negras e o protagonista, por ser negro, pode ser um possível alvo. Sendo assim, o longa nos traz uma reflexão de: “se as pessoas desaparecidas fossem brancas , o problema seria tratado com a mesma desimportância?”. É um filme que aborda o racismo institucionalizado sem nunca tirar o foco na trama principal, com ele percebemos as pequenas lutas que uma pessoa tem só por ser negra, desde um policial não acreditar na veracidade de fatos até ter que relevar comentários racistas que tem como pano de fundo coisas como: “ahh, mas eu votaria três vezes no Obama se pudesse”.

O filme só de tratar dos problemas raciais sem cair no clichê já merece ser ovacionado. Entretanto ele vai além, ele nos proporciona uma experiência de terror e suspense com maestria, dando de bandeja uma atmosfera que começa incômoda e passeia pela angústia, paranoia, chegando ao ápice com medo e pânico, ainda dando espaço para um humor nervoso que sempre acha espaço mesmo quando as coisas ficam mais tensas. “Corra!” é engraçado, assustador, satírico, provocante e criativo, me deixou envolvida do começo ao fim e eu realmente acredito que o Jordan Peele fará pelo terror o que o Peter Jackson fez para a fantasia.

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Maysa Costa

Amante de filmes, desenhos, livros, séries, HQ’s e cultura pop em geral