Com “Nós”, Jordan Peele mostra que seu brilhantismo não está restrito apenas a “Corra”.
Sem spoilers
Uma família com quatro integrantes está passando férias em uma casa de praia, quando passa a ser aterrorizada por versões malignas deles mesmos. Com roteiro e a direção do Jordan Peele que fez o incrível “Corra”, “Nós”, mistura subgêneros do terror de maneira eficiente e orgânica. O filme pode lhe parecer que “você já viu isso em algum lugar”, mas Peele trabalha de maneira criativa a subversão de expectativas, o telespectador pode acreditar que sabe para onde o filme vai, mas muito provavelmente estará enganado.
O primeiro ato é bem típico de filme de terror, introdução dos personagens viajando nas férias. É bastante importante para entendermos a dinâmica familiar daquelas pessoas, mostra o íntimo e as personalidades de cada um fica bem definida. O segundo ato nos fisga ao maior estilo de “invasão domiciliar” com “ doppelgänger”, mas a sensação de familiaridade com cada um desses gêneros se esvai quando ele desconstrói suas expectativas fazendo algo totalmente diferente do que você espera. O ato final é extraordinário, a maneira como o diretor usa a música e a movimentação dos personagens no presente intercalada com eles no passado por meio de flashbacks, mostra o quão cuidadosa é a montagem, nos proporcionando um verdadeiro espetáculo artístico. No entanto, é válido ressaltar que para aqueles que não dão abertura demais para “suspensão da descrença”, a falta de certas explicações sobre coisas específicas no filme, passa uma sensação da obra não ser tão coesa.
Peele, nas suas escolhas artísticas excêntricas, procura sempre comunicar algo ao espectador e ele dá um show no uso da câmera de maneira criativa, planos aéreos e giratórios que aumentam a tensão, no entanto, utilizados de maneira não clichê do que geralmente se espera, quero dizer, planos giratórios ao redor do personagem são muito usados unido a jumpscares, mas não é o caso desse filme, ele extrai tensões de coisas naturais, como um passeio no parque ou caminhada na praia e faz isso sem utilizar de pistas falsas para enganar o telespectador.
Dentre as atuações a que mais chama atenção é o da Lupita Nyongo, dona do filme, com sua interpretação nervosa e protetora de uma mãe, ela confere camadas a personagem que se vê em situação de estresse extremo para proteger sua família. Lupita passeia por várias emoções sem deixar a peteca cair um minuto, provando que só faltava oportunidade a ela para estrelar um filme. Wiston Duke dá um ar de “paizão”, bem família normal que, apesar de ser o maior dentre os membros e passar uma imagem de “protetor da família”, não faz muita coisa e é o que mais apanha, subvertendo assim os esteriótipos do gênero. Diferente do que se vê em filmes de terror, as crianças são muito úteis, Shahadi Wright Joseph é muito expressiva e sua versão maligna detém um sorriso aterrorizante; já Evan Alex não consegue exprimir tanto o pânico quanto a garota consegue, mas seu olhar penetrante da sua versão maligna ajuda o desenvolvimento do personagem fluir.
A violência do filme é gradativa, o diretor espera que os olhos do telespectador se acostume aos poucos com a violência e , assim, a aumenta a cada cena. Há um uso de humor que fica meio desconexo quando quebra a tensão da cena, o humor que mais funciona são as músicas escolhidas para trilha sonora que conferem uma graça não verbalizada e sádica.
Nós é um filme intrigante, metafórico, que quebra expectativas e ainda te leva a uma reflexão sobre privilégios e preconceitos diante do desconhecido.
Uma última coisa, eu acho que duas frases se encaixam bem no filme e vale a reflexão a respeito: “Quando a educação não é libertadora o sonho do oprimido é se tornar opressor” e “O homem não nasce mau, a sociedade o corrompe”.